Todos nós, quando decidimos seguir a Jesus, nos dispomos a entrar numa jornada espiritual. Como ponto de partida dessa jornada estabelecemos algumas bases, ou princípios. Por exemplo, a própria fé em Jesus. Essa é a base fundamental da jornada espiritual que estamos envolvidos. Em outras palavras, nossa jornada espiritual existe porque cremos que Jesus é o filho de Deus, o próprio Deus encarnado.
Toda jornada é dinâmica. Não estamos parados, mas em movimento, em percurso. No caso da espiritualidade, o movimento se chama expansão da consciência, ou expansão do horizonte de compreensão. A Bíblia usa a expressão metanóia para explicar esse movimento.
Acredito que a metanóia seja um encontro, uma parceria, entre a disposição humana e a ação do Espírito Santo.
Por exemplo, num primeiro momento da nossa espiritualidade cremos que Jesus é o próprio Deus encarnado. Como estamos em jornada, essa compreensão certamente terá desdobramentos, se expandirá: por crer no Verbo Encarnado, nossa fé deixa de ser teocêntrica e passa a ser cristocêntrica. Em outras palavras, toda compreensão que temos de Deus deve passar primeiro por Jesus, pois cremos que ele é o próprio Deus. Ou seja, tudo que se pensa sobre Deus deve se parecer com Jesus de Nazaré, ou então não é o nosso Deus.
Esse movimento é a metanóia. A expansão da consciência. Expansão do nível de compreensão.
Essa jornada faz parte da tradição cristã, testemunhada primeiramente pelos próprios discípulos de Jesus. Paulo, por exemplo. Um fariseu assassino de seguidores de Jesus. Em certo ponto de sua jornada, ele sofre uma metanóia e deixa de persegui-los. Não só isso, passa a liderá-los. Como judeu fariseu, guardador da Lei de Moisés, era de se esperar que ele comungasse da opinião de Tiago e Pedro: a mensagem de Jesus é só para os Judeus, nação eleita de Jeová. Contudo, Paulo tem uma nova metanóia em sua jornada: a pregação do Evangelho para todos. É por causa desse novo horizonte de compreensão que se abriu para Paulo que temos a oportunidade de seguir Jesus, pois ele foi o evangelizador dos gentios (não judeus).
Uma outra metanóia ocorrida na jornada de Paulo foi o rompimento com a tradição judaica, como guardar o sábado e a circuncisão. Para ele, ser seguidor de Jesus não era ser judeu, era fazer parte de um novo tipo de humanidade. Essa nova compreensão gerou uma briga entre ele e os apóstolos da igreja de Jerusalém, entre eles Tiago e Pedro. Era inadmissível para Pedro e Tiago o rompimento com o judaísmo. Mas Paulo tinha ampliado seu horizonte de compreensão sobre a mensagem de Jesus: Israel, nas palavras de Jesus, não era uma nação literalmente, mas sim uma metáfora sobre o novo tipo de humanidade a partir de sua ressurreição.
Essa nova compreensão também acontece, um pouco mais adiante, na vida de Pedro. Pedro seguia rigidamente a tradição judaica, e era contra a pregação do Evangelho aos gentios. Contudo, ele tem uma experiência que expande sua compreensão, uma metanóia, relatada em Atos 10:9-48: têm uma visão de animais quadrúpedes, répteis e aves consideradas impuras na tradição judaica, e ouve uma voz mandando-o matá-las e comê-las. Ele se nega, alegando que nunca havia comido algo impuro ou imundo. Então a voz lhe responde dizendo que ele não deve considerar impuro o que Deus purificou. Essa visão é uma metáfora, evidentemente. Ela significava que Pedro não deveria considerar os gentios impuros, pois Deus os havia purificado.
Ele sofre uma metanóia, uma expansão do seu horizonte de reflexão.
Poderiam ser relatadas muitas outras experiências de pessoas da tradição cristã, mas não são necessárias. Os exemplos descritos bastam para nos mostrar como a fé e a espiritualidade cristã são dinâmicas. Reconhecer que estamos sempre caminhando em direção a metanóia, ou seja, a uma expansão da nossa compreensão, não é sinal de soberba, e sim de humildade, pois existe muito mais para se aprender e compreender sobre Jesus e seu Reino. Uma espiritualidade que não caminha em direção a expansão da consciência, em direção à ampliação do horizonte de reflexão, está estagnada, doente.
Todo princípio que sustenta a nossa fé e espiritualidade tem como desdobramento o alargamento da compreensão desse princípio, a partir do advento de uma nova compreensão acerca das muitas realidades que se apresentam para nós. Por exemplo, cremos que Jesus é o nosso salvador. Mas a partir do advento de uma nova compreensão sobre a realidade, que se desvela para nós quando fazemos nossas leituras da vida, enxergamos que a salvação que Jesus nos trouxe tem conseqüências para toda a vida humana e não humana. Como podemos pensar em salvação da humanidade se não pensamos em salvação do meio ambiente? Não podemos, precisamos inserir o meio ambiente em nossa teologia da salvação. Ou seja, nosso horizonte de compreensão sobre salvação foi expandido, ampliado, sofreu metanóia. Ainda bem, pois assim sabemos que estamos caminhando, não estagnados. Essa compreensão nada tem a ver com soberba, mas sim com o reconhecimento de que há mais sobre a idéia de salvação que Jesus propôs, que ela mesma é dinâmica e viva, e cabe a nós compreendê-la e traduzi-la com relevância para nós e para as pessoas do nosso tempo.
Ampliar o horizonte de reflexão não significa que agora somos melhores do que os outros. Vejam o que Paulo escreveu aos Romanos, capítulo 14:
Aceitem o que é fraco na fé, sem discutir assuntos controvertidos. Um crê que pode comer de tudo; já outro, cuja fé é fraca, come apenas alimentos vegetais. Aquele que come de tudo não deve desprezar o que não come, e aquele que não come de tudo não deve condenar aquele que come, pois Deus o aceitou. Quem é você para julgar o servo alheio? É para o seu senhor que ele está em pé ou cai. E ficará em pé, pois o Senhor é capaz de o sustentar. Há quem considere um dia mais sagrado que outro, há quem considere iguais todos os dias. Cada um deve estar plenamente convicto em sua própria mente. Aquele que considera um dia como especial, para o Senhor assim o faz. Aquele que come carne, come para o Senhor, pois dá graças a Deus; e aquele que se abstém, para o Senhor se abstém, e dá graças a Deus. Pois nenhum de nós vive apenas para si, e nenhum de nós morre apenas para si. Se vivemos, vivemos para o Senhor; e, se morremos, morremos para o Senhor. Assim, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor. Por esta razão Cristo morreu e voltou a viver, para ser Senhor de vivos e de mortos...
Versículo 14 - Como alguém que está no Senhor Jesus, tenho plena convicção de que nenhum alimento é por si mesmo impuro, a não ser para quem assim o considere; para ele é impuro.
Paulo tinha como princípio de fé que nenhum alimento é impuro, mas sabia que existiam pessoas que consideravam alguns alimentos impuros. Ele se achava melhor, ou “na frente” desses? Não. Apenas sabia que seu horizonte de compreensão era outro. E devia respeitar os que pensavam o contrário dele. O respeito e a tolerância são princípios de humildade, pois reconhecem que outros podem pensar de outra forma, sem necessidade de nenhum juízo de valor.
É lindo o artigo primeiro da Declaração de Princípios sobre a Tolerância, da ONU:
Artigo 1º - Significado da tolerância
1.4 Em consonância ao respeito dos direitos humanos, praticar a tolerância não significa tolerar a injustiça social, nem renunciar às próprias convicções, nem fazer concessões a respeito. A prática da tolerância significa que toda pessoa tem a livre escolha de suas convicções e aceita que o outro desfrute da mesma liberdade. Significa aceitar o fato de que os seres humanos, que se caracterizam naturalmente pela diversidade de seu aspecto físico, de sua situação, de seu modo de expressar-se, de seus comportamentos e de seus valores, têm o direito de viver em paz e de ser tais como são. Significa também que ninguém deve impor suas opiniões a outrem.
Paulo não se achava melhor porque a jornada espiritual não é uma disputa, é uma caminhada ao lado de Jesus. Uns compreendem que o Evangelho é para todo o ser humano, outros que o Evangelho é apenas para os judeus. Quem é melhor? Ninguém. Apenas devemos saber que, como estamos em jornada, sofreremos metanóias o tempo inteiro, se nossa espiritualidade estiver viva e sadia. Esse é o convite de Jesus: ouviste o que foi falado aos antigos, eu porém vos digo... Metanóia.
Alguns princípios que tínhamos como base mudarão, justamente como fruto da dinâmica da jornada espiritual. Eles se desdobram, entram em nossa compreensão, e se tornam novos princípios. Uma fé viva é uma fé dialética.
Estamos em jornada em todas as esferas da vida, não apenas na esfera espiritual. Nossa compreensão sobre a própria vida muda, dinamicamente, conforme amadurecemos. Quando somos crianças, pensamos como crianças. Mas nossa compreensão sofre muitas expansões até nos tornamos adultos. Decidir namorar é um tipo de expansão da compreensão. Decidir casar é outro. É o amadurecimento de um princípio, a expansão de um princípio. Metanóia.
Quando alguém começa a estudar Economia, tem um tipo de compreensão sobre o assunto. Conforme vai estudando, sua compreensão vai expandindo, seu horizonte de reflexão muda, também se expande. Da mesma forma, quando alguém começa a estudar a Bíblia. O movimento de expansão do horizonte de compreensão é o mesmo do estudante de Economia. É assim porque somos assim, dinâmicos. É assim porque amadurecemos.
Quando eu era menino, falava como menino, pensava como menino e raciocinava como menino. Quando me tornei homem, deixei para trás as coisas de menino – 1 Co. 13:11.
Paulo está sendo soberbo em sua declaração? Não. Sua declaração marca uma profunda consciência de si e do outro: a responsabilidade de sua compreensão, e o respeito por quem está começando sua jornada; a relevância que as coisas de menino tiveram para sua jornada, e a importância que terão para os que ainda são meninos.
Os reformadores tinham plena consciência da dinâmica da jornada. Eles sabiam que não era preciso uma única reforma, mas que a igreja de Jesus deveria sempre estar se reformando. Por isso o lema da Reforma era ecclesia reformata ac propter semper reformanda, isto é, “igreja reformada e por isso mesmo sempre se reformando”.
Por que sempre se reformando? Porque os tempos mudam, e junto com o tempo, as pessoas e suas compreensões. E sabemos que a mensagem de Jesus tem relevância para todas as pessoas, em todos os tempos. Por isso precisamos sempre pensar em como torná-la relevante para o nosso tempo, para as pessoas do nosso tempo.
Por exemplo, com a Revolução Industrial, o meio ambiente vem sofrendo seria degradação. Sabemos que a Revolução Industrial tinha como paradigma a compreensão de que os recursos naturais nunca findariam, por isso não importava o quanto eles eram explorados. Contudo, depois de alguns séculos de exploração, sabemos que esse paradigma estava errado. Pode ser que a Terra volte a ser como era antes da Revolução Industrial, se revitalize, mas para isso, alguns séculos serão necessários, e se não mudarmos nosso padrão de exploração e consumo, poderemos ser extintos. Corremos esse sério risco. Para se ter noção do quanto exploramos a Terra, e de como a cultura de consumo se tornou absurda, muito maior do que a Terra é capaz de suportar, segue uma estatística: se todas as pessoas do planeta consumissem no mesmo padrão dos norte-americanos, seriam necessários oito planetas Terra para suprir a demanda.
Mais uma: hoje, 1 bi de pessoas não tem acesso á água potável. Em 25 anos é previsto que 2,7 bi não tenham. Os maiores consumidores são os norte-americanos.
Esse é um problema do nosso tempo. Um problema essencialmente nosso. E a mensagem de Jesus precisa ser relevante para essa realidade, apesar de ter sido pregada há dois mil anos, quando ninguém imaginava uma Revolução Industrial e a escassez de água doce. Por isso precisamos reformar nossa compreensão da mensagem de Jesus. Já foi citado nesse artigo que não podemos pensar em salvar a humanidade sem pensar em salvar o meio ambiente. Está justificada a razão para essa compreensão.
Então o conceito de salvação para nós precisa ser expandido: precisa levar em conta nossos problemas históricos. Em outras palavras, precisamos ser salvos do padrão de consumo imprimido pelos norte-americanos, senão seremos extintos.
Estou citando esse exemplo para mostrar a dinâmica da espiritualidade cristã. A preocupação com o meio ambiente não fazia parte do horizonte de reflexão cristã pré-Revolução Industrial. Mas hoje precisa fazer. Metanóia.
Crescemos. Nossa compreensão de salvação se expandiu, se desdobrou, e agora está em pleno diálogo com o nosso tempo, com as pessoas do nosso tempo, com a história, com a economia, com a política – a cultura humana em geral.
Mas essa é uma compreensão que nem todos têm. Cabe aos que tem ajudar os que não tem a ampliar seu horizonte de reflexão sobre salvação. Esse não é um movimento de soberba, e sim um movimento de profundo respeito pela humanidade. Como ouvi no filme “A última hora”: dado o nível de consciência das pessoas, elas estão se esforçando para poupar o meio ambiente. Contudo, cabe aos que tem consciência profunda do problema imprimir uma mudança cultural de consumo para a humanidade.
O movimento de expansão da compreensão é maravilhoso. Durante muito tempo na história da humanidade se creu que a Terra era plana como uma tábua, sustentada por duas divindades sob um abismo: sheol, geena, ou hades . Durante muito tempo na história da humanidade se creu que a Terra era o centro do universo. Durante muito tempo na história da humanidade se creu que os negros eram inferiores aos brancos, pois não tinham alma. Já cremos que os arianos eram a raça superior. Já cremos que pessoas com defeitos genéticos deveriam ser mortas, pois atrapalhavam o processo de evolução humana. Já acreditamos que as nuvens do céu eram de algodão doce. Mas crescemos. Sofremos expansão da consciência. Nosso horizonte de compreensão se alargou.
Enfim, estamos em jornada. Algumas questões que já foram para nós princípios se desdobraram em novos princípios. Se reformaram. Sofreram metanóia. E por isso algumas discussões naturalmente devem passar, não por serem bobas, mas por já terem sido assimiladas e reformadas, gerando outras novas discussões, outros novos princípios, que por sua vez serão assimilados e reformados, gerando outros novos princípios e discussões. Isso nunca terminará, a não ser que alguém esgote tudo o que existe para se compreender sobre Deus-Jesus e seu Reino.
Isso não torna irrelevante e dispensável os princípios que tínhamos no começo de nossa jornada, pelo contrário, confere a eles valor justamente por fazerem parte da história da nossa jornada, da nossa construção como sujeitos. Por isso devemos caminhar com todos, princípio por princípio, e cuidar para não pular etapas - como uma adolescente de dez anos grávida, conscientes da nossa responsabilidade de tornar a jornada com Jesus apaixonante para todos.
Pode ser, e é até provável, que no decorrer da jornada compreensões diferentes sobre o mesmo tema sejam construídas. Ótimo. Isso marca a pluralidade do pensamento humano, a riqueza e a singularidade de cada pessoa. Compreensões diferentes se somam, não se subtraem, porque ninguém é dono da verdade. Intérprete só.
Lucas Lujan
Igreja Betesda São Paulo
terça-feira, 20 de abril de 2010
Jornada Espiritual
Postado por portaljube às 14:25
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